Kleber Mendoça filho, filho de Recife, tinha descrito magnificamente no seu filme « Bairros do Recife » as violentas relações sócio-antropológicas entre donos de casa e criados, uma versão moderna da relação senhor-escravo, detalhada na obra epónima de Gilberto Freyre. Uma tragédia muito « mendocena » entristeceu todo um país, muito para além da capital de Pernambuco. Recife, como Nova Iorque antes de 2001…ou Casablanca, tem as suas torres gémeas, um marcador espacial feito pelas mãos hábeis dos mestres da engenharia civil brasileira.
Um símbolo de luxo redescoberto do centro do Recife, cidade cuja antiga riqueza se baseava no açúcar e no trabalho escravo, este vanguardismo tecnológico das torres contrasta simbolicamente com o arcaísmo social do nordeste brasileiro. A 2 de Junho de 2020, Mirtes, uma trabalhadora doméstica, foi forçada pela senhora da casa a ir para o seu local de trabalho, numa das torres gémeas, no meio de um período de quarentena ligado à covida,19 embora este tipo de emprego não tivesse carácter essencial e/ou vital. Ela teve de ir trabalhar com o seu filho de 5 anos porque a creche estava fechada…por causa da COVID19. Enquanto ela andava a passear o cão do seu patrão à chuva, o rapaz mostrou o desejo de se juntar à sua mãe e pediu à governanta para o substituir. A Senhora, obviamente irritada pelo pedido do rapaz, levou-o ao elevador, como se pode ver nas imagens da câmara de vigilância, carregou várias vezes nos botões porque o pedido inicial não parecia ter sido registado, e deixou-o sozinho no elevador que devia descer para o rés-do-chão. Depois, por razões ainda por determinar, o jovem rapaz subiu para o nono andar de onde caiu no vazio.
Apesar dos cuidados prestados por um médico a viver no edifício e pela mãe do rapaz, o rapaz morreu durante a sua transferência para o hospital. Infelizmente, este acidente ilustra as profundas clivagens sociais nos países do Sul, e especialmente nos países emergentes onde o desenvolvimento económico não se traduziu em termos de direito do trabalho…ou de direito. Infelizmente, a provação da COVID reforçou o fosso entre aqueles que ainda podem acreditar no Estado Providência e aqueles que só podem confiar em si próprios ou na solidariedade dos grupos sociais… Neste mundo pós-COVID, este segundo grupo é mais numeroso do que nunca, embora a criação de riqueza económica tenha começado melhor.