« Vamos comer a Canudos »
Foi com esta frase emprestada dum coronel do exercito que o historiador humorista do Youtube Eduardo Bueno apresentou, com seu escárnio característico, o trágico episódio da Guerra de Canudos (1896-1897) (https://www.youtube.com/watch?v=f4DT0-gvs6c). Esta guerra, pretendida como um elemento importante do romance nacional, não prefigura, de fato, as lágrimas antropológicas do Brasil atual? Era a guerra de dois brasileiros, a das cidades e a dos campos, a da jovem República « modernista » contra os partidários da monarquia desaparecida, a de uma modernidade intransigente contra um mundo de história e geografia esquecidas. Talvez tenha sido acima de tudo a rejeição pelos conselheiros positivistas do Rio de Janeiro de uma utopia que alguns descreverão de certa forma como libertária e em outros como reacionária. Por sua resistência contra a ordem estabelecida, contra os cânones da modernidade (no primeiro sentido porque a nova artilharia estava saindo das fábricas de armas alemãs), o místico pregador Antonio « o conselheiro » Maciel parecia sacudir as certezas da República Federal, aclamado por sua bandeira positivista « Ordem e progresso ». A resposta intransigente da República e de seu exército, contra eras em trapos, marcou a maldição original do Brasil, nascida na violência da escravidão e no massacre dos índios. A certeza da superioridade dos valores da instituição negligenciou ou reprimiu os das minorias do país, entidades insignificantes sem direitos aos olhos dos poderosos. Em suma, Canudos foi uma nova versão da controvérsia de Valladolid, com, como Bartolomé de La Casas, o jornalista positivista e ex-militar Euclides da Cunha que deveria governar o direito dos habitantes de Canudos de viver com dignidade (apesar de uma certa rejeição da mestiçagem, que em sua opinião foi uma « regressão »), enviando os imperialistas e a violência do exército brasileiro e seus valores positivistas e os dos « cangaceiros » de Canudos, de volta para trás. Para Josué de Castro, como para Euclides da Cunha, o Nordeste é uma terra tão árida para a agricultura quanto fértil para as tragédias. A Guerra de Canudos é uma boa ilustração desta « maldição » que os dois grandes autores apresentaram como gravada no mármore da história social do Nordeste.
Canudos começou como uma utopia na década de 1890. Neste sertão baiano, que atinge regularmente « Secas » (períodos de seca), a exploração coletiva das terras da fazenda Monte Belo permitiu, de forma quase crística, tirar frutos das entranhas de uma terra estéril. Esta utopia teria nascido da vontade de um homem iluminado, Antonio Maciel, conhecido como o « conselheiro », de criar uma sociedade que vivesse sob os preceitos da Bíblia, longe dos valores errôneos de uma República que, a partir de sua criação em 1889, iria se separar da Igreja ». A lealdade de Antonio Conselheiro ao imperador caído apareceu como um apoio a um sistema político que reconhecia a Igreja Católica Romana como o pilar intangível do império brasileiro. A rejeição de Maciel à República foi, no entanto, interpretada pelos « coronéis » (políticos locais do Estado da Bahia) como um perigo para a jovem República que teve que ser derrubado para evitar qualquer contágio em um Nordeste abalado por convulsões revolucionárias motivadas pela fome, miséria e opressão nas fazendas. Nessas grandes fazendas latifundiárias, os « coronéis » e reis locais eram políticos importantes que rapidamente apelariam para o governo brasileiro. De fato, Antoine, o Conselheiro, pressionou o povo a se recusar a pagar impostos injustificados. Este místico cangaceiro, como Eduardo bueno o apelidou, foi pregar nas terras queimadas do Sertao. Seu crescente número de fiéis reconstruirá as estelas abandonadas nos cemitérios, cobrirá as paredes das igrejas com cal branca, seguindo seu mestre espiritual em sua vida de ascetismo e meditação.
Em 1890, mais de 8.000 pessoas seguiram este ascético, que era tão magro que se acreditava que sempre era visto em perfil, como Mario Vargas LLosa humoristicamente colocou em seu romance « A Guerra no Fim do Mundo ». Eles se instalarão nesta fazenda abandonada de Monte Belo que levará o nome da tragédia epônima: Canudos. Rapidamente, 5000 casas iriam sair do chão, reunindo mais de 20.000 pessoas neste outro Brasil em 1895. A agricultura das primeiras horas, baseada no cultivo de mandioca e feijão preto e na criação de caprinos, ia garantir a auto-subsistência da comunidade.
Em 1895, uma « guerra de aniquilação » foi desencadeada pela República e seu exército com sua auréola de ideais positivistas contra um exército de mendigos que iriam pagar o preço em sangue por seu alcance excessivo, o de opor-se a um governo que não se preocupava com o povo da periferia esquecida. A comunidade havia comprado muitas tábuas de madeira na comuna de Juazeiro, a « capital » da região norte da Bahia. No entanto, esta madeira nunca lhes foi entregue. O vereador decidiu recuperar sua propriedade e foi para a pequena cidade de Juazeiro, acompanhado por 300 adoradores. Foi a polícia que os recebeu, a pedido do prefeito da cidade, que teve medo da chegada desses « fanáticos ». 150 dos companheiros de Antonio foram mortos…em comparação com 10 da força policial. Entretanto, esta algarada foi registrada como uma « afronta » inaceitável aos oponentes do exército da república. Antonio, o vereador, também escreveu panfletos anti-republicanos e pró-royalistas e se recusou a pagar os impostos que a administração lhe exigia, argumentando que o Estado nunca havia prestado nenhum serviço a Canudos. Em resposta, 586 soldados foram enviados a Canudos em janeiro de 1896, sob o comando do Major Febronio. Desta vez, as tropas enviadas do Rio foram emboscadas e rapidamente encaminhadas pelos nervos de Antonius, o Conselheiro. Foram necessárias 4 expedições militares para pôr um fim a esta « heresia ». Os cangaceiros, acostumados a uma caatinga, causaram perdas terríveis a este exército moderno, equipado com armas Krupp novinhas em folha, saindo das forjas prussianas. A terceira expedição conseguiu chegar a Canudos e entrou na cidade, mas as ações de guerrilha urbana dos cangaceiros mais uma vez encaminharam um exército em uma batalha que hoje seria descrita como « assimétrica », na imagem da Guerra do Vietnã. A 4ª expedição exigiu 10.000 homens e equipamentos pesados. Em leituras modernas desta tragédia, alguns podem ver as atuais fraturas do Brasil. O próprio Euclides Da Cunha tirou algumas conclusões que hoje são verdades para a construção de um Brasil que integraria suas « periferias internas » e torceria o pescoço às contradições que a estão dilacerando, das quais o atual presidente é, afinal, apenas a expressão mais visível do exterior.
fotos : flavio barros
« Em vez de massacrar os rebeldes de Canudos, teria sido mais sábio, portanto, instruí-los, por meio de diplomas, a mandar os professores para os sertanejos que foram levados à barbárie, assegurando, antes de tudo, como pré-requisito, a garantia da evolução social. Da Cunha finalmente volta atrás a mística retrógrada e a brutal modernidade imposta sem consideração, e postula que as contradições culturais entre o sertão, que é o portador de uma síntese das forças vivas da história, e a falsa « civilização » do herdeiro da colonização, voltada para a Europa e o Atlântico, poderiam ser resolvidas de uma terceira maneira: a da integração política desses « duros compatriotas » temporariamente excluídos do « progresso » e « mais estrangeiros neste país do que os imigrantes europeus ». https://fr.wikipedia.org/wiki/Guerre_de_Canudos
cânones para superar a « utopia » de Canudos. Uma grande parte dos 25.000 habitantes foi colocada à espada.