Fonte : Allo Cine

Duas vezes, os cineastas brasileiros usaram o tapete vermelho e o ouro de Cannes para enviar uma mensagem ao mundo. Em 2016, foi a rejeição da arbitrariedade após o despedimento de Dilma Rousseff, durante a apresentação do filme « Aquarius », de Kleber Mendoça Filho.

Fonte : LCI
O ano passado, ano da eleição do presidente de extrema-direita Jaïr Bolsonaro, tratava-se de mostrar ao mundo, através deste mesmo cineasta do Nordeste, o sofrimento de uma parte do povo brasileiro, deixado para trás pelo « milagre económico » dos anos 70 e pelo processo mais recente de emergência e confrontado com uma violência crescente e inaceitável. O neo-liberalismo nacionalista da equipa presidencial tem uma visão muito negativa deste cinema autoral, que vê como fruto e vector de um marxismo cultural insuportável que pretende combater em vez de promover. Kleber Filho refuta qualquer qualificação como cineasta comprometido. Acima de tudo, quer tornar visível a indizível miséria dos pequenos, sem o esteticismo da era do Cinema Novo.

« Fazer filmes sobre dramas humanos, sobre pessoas que enfrentam todo o tipo de dificuldades pode ser visto como uma forma de cinema empenhado, mas não quero pôr ‘cineasta empenhado’ no meu cartão de visita », diz.

« Sou um cineasta brasileiro, vivo numa época em que a sociedade brasileira está a sofrer e as histórias estão a surgir », acrescenta. (www.la-croix.com/Culture/Bacurau-Cannes-eclaircie-cinema-bresilien-Bolsonaro-2019-05-11-1301021056)

Este desejo de uma forma de realismo constestatório não é novo. Vai afirmar-se muito cedo no Brasil a partir dos anos 50, mas é durante o Cinema Novo que conhecerá as suas melhores horas sob a orientação do seu mentor baiano Glauber Rocha, autor do manifesto « a estética da fome » e de muitas obras incluindo « António das Mortes » e « o deus negro e o diabo louro ».

« Os cineastas do Cinema Novo combinaram uma estética moderna com um discurso político radical para expor as realidades de pobreza, subdesenvolvimento e exploração do povo brasileiro ».www.erudit.org/fr/revues/cine/2011-v22-n1-cine1817807/1005802ar/

« O movimento do Cinema Novo surge no início dos anos 60, num período que antecedeu o golpe de Estado e em que o « humor » ou o ar da época era de reforma social e política. Era um momento de denúncia: tratava-se de mostrar a « cara » do país no grande ecrã. Isto leva-nos a pensar no movimento do Cinema Novo como um protótipo ritual dos « mitos progressistas e revolucionários » G. Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire,…, para usar a expressão de Gilbert Durand, aqueles que visam acelerar a história e controlar o tempo. Hoje, a retomada chega também num momento de transformação, mas também de redemocratização do país, onde o movimento de protesto social já não tem o mesmo sentido que antes: onde se aceita viver a vida como ela é. Como resultado, o cinema também foi transformado: na sua linguagem, estética e técnica » (em Mitologia do Cinema Brasileiro, Cristiane Gutfreind).

Na época do Cinema Novo, era um desejo de « elevação da consciência de massa » dos cineastas intelectuais das classes média e alta que não encontravam as massas na sua vida quotidiana. Hoje, é uma questão de mostrar as realidades urbi et orbi que os grandes grupos mediáticos, como a Globo, esquecem demasiadas vezes, porque são menos « bancáveis ».